Alessandra Nascimento – jornalista, ativista e presidente da Associação Baiana de Pessoas com Epilepsia, Familiares e Amigos – https://abpefa.org.br/
O que é viver em um país com uma doença sem cura, mas tratável, que à medida que você vai envelhecendo uma série de comorbidades vão se surgindo? Algo que surge em sua infância, afeta a sua personalidade e forma de socializar-se com o mundo. Interfere em seu jeito de ver e perceber as coisas, em sua instabilidade e saúde emocional. Mas você não entende o porquê e, ao longo de sua trajetória você cresce, conclui seus estudos, segue para a vida profissional, mas sempre percebe que algo em você ressoa diferente dos demais. E que, infelizmente, você não consegue explicar e por vezes sente como se “tivesse prazo de validade”. Algumas situações, mesmo que rotineiras, terão efeito desencadeador de crises epilépticas às quais você não vai ter o controle, mas sabe que se não tiver o socorro adequado pode ficar gravemente lesionado em seu cérebro ou mesmo falecer.
Essa é a vida de uma pessoa diagnosticada com Epilepsia. Uma doença neurológica que impacta na vida não apenas da pessoa que tem a doença, mas de seus familiares. Segundo a Organização Mundial da Saúde ela atinge 2% das pessoas no mundo e eu sou uma delas. Desde os 8 anos quando recebi o diagnóstico até hoje vivencio uma constância de incertezas, inseguranças e questionamentos do porquê nesses mais de 42 anos, ter que passar e experimentar situações que vão desde a hipocrisia ao descrédito. A humilhação ao despreparo e preconceito. A incerteza começa com as comorbidades que a própria epilepsia conseguiu incorporar em minha vida ao longo dos anos. Desde as mais sutis até às mais delicadas no campo psiquiátrico e até as mais sérias como as cardiovasculares e riscos iminentes de trombose, AVC, infarto, dentre outros.
Se os desafios parassem por aí seria a gloria, mas para nossa infelicidade não é bem assim. Vivemos num país que há falta de medicamentos para pessoas com epilepsia, tanto na rede privada quanto na pública.
Convivemos com negativas constantes por parte do INSS no que diz respeito à autorização de benefícios BPC LOAS, aposentadoria por invalidez e até mesmo a aposentadoria por pessoa com deficiência. Se a Epilepsia é de fato uma deficiência oculta como inclui a lei no. 14.624/2023 o porquê de tanto empecilho e uso da burocracia como premissa de impedimento de Direitos é uma constante. E isso vindo da parte de quem deveria ‘proteger’. Sem esquecer que, como assegura a Constituição Federal Brasileira, no artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Eu tomo cinco e a cada ano que passa aumento um e a situação ganha tons mais delicados sob a perspectiva do avançar da idade e dos anos de medicamentos de uso contínuo interferindo na saúde de outros órgãos do corpo. Além do anticonvulsivante – e esse eu não posso nunca abrir mão – com o tempo tive de agregar outros medicamentos para minimizar os efeitos colaterais que se apresentam direta ou indiretamente associados ao uso de medicamentos prolongados ou a própria doença. Desde as intolerâncias alimentares às questões do trato ginecológico do aparelho reprodutor, fora fibromialgia e como já disse uma dezena de comorbidades adquiridas com o passar dos anos ampliando minhas dores físicas, mentais e emocionais.
Sou da geração que na infância foi prescrita com controle anticonvulsivo o ácido valproico. O mesmo que mais tarde estudos de renomadas universidades brasileiras comprovaram ser um dos medicamentos que, quando usados em idade fértil, causam má formação fetal. Ou seja, nossos filhos e filhas não ficaram imunes ao nosso sofrimento. Infelizmente o atraso na discussão de políticas públicas interferiu no bem-estar e na qualidade de vida da geração vindoura. A triste constatação é saber que na Europa, a prescrição para uma pessoa com epilepsia para uso do ácido valproico só é permitida ao paciente com autorização de dois neurologistas especializados em epilepsia em razão dos riscos de má formação fetal em idade fértil, dentre outros a ele associados. No Brasil há algum documento informando ao paciente dos riscos de uma gravidez durante o uso do medicamento? Aparece apenas em letras miúdas na bula do medicamento e nada mais.
O Brasil carece de um estudo dos impactos dos medicamentos anticonvulsivos a longo prazo na população e mais ainda, o monitoramento dessa população. Acompanhá-la em seu dia a dia, sua saúde mental e a de seus familiares. Estamos falando de políticas públicas específicas para essa população, com legislação que garanta cumprimento de direitos.
Há medicamentos cujos efeitos colaterais estão associados à queda de cabelo, alopecia em mulheres, endometriose, obesidade, gordura no fígado, osteoporose, pedras nos rins, intolerâncias alimentares, perda da coordenação, pensamentos suicidas, desenvolvimento do mal de Parkinson, irritabilidade, alterações de humor, depressão, ansiedade. E já parou para pensar que esses efeitos colaterais impactam em pessoas de diferentes faixas etárias desde crianças e adolescentes a adultos e idosos? Nosso país está atrasado em discutir a epilepsia como a dedicação que o tema merece.
Ser pessoa com Epilepsia no Brasil é ser antes de tudo ser um sobrevivente. Sobreviver a cada crise, ao descaso, a omissão, a negligência, ao preconceito. Aprender desde cedo a conviver com a humilhação e a solidão. A epilepsia é uma deficiência é oculta, mas nós, pessoas com epilepsia existimos! Espero que isso fique claro daqui para a frente. Precisamos nos empoderar e exigir mais se quisermos que nossos direitos sejam de fato reconhecidos.