“Toda vez que os direitos do meu filho são negados, eu também sofro uma violência”. O desabafo dessa mãe, ao lado do filho autista, de 14 anos de idade, na tarde de quinta-feira (18), resumiu parte das dificuldades enfrentadas por muitas soteropolitanas que dependem dos serviços públicos de saúde, educação, transporte, segurança, entre outros, no dia a dia da capital baiana, a Cidade das Mulheres, onde elas representam 54,4% da população. A moradora de Cajazeiras era uma das dezenas de mulheres que lotavam o auditório do Palácio da Aclamação, no lançamento do manifesto “A cidade das mulheres precisa ser mais segura, justa e democrática”.
Fruto dos debates realizados em quatro oficinas do projeto “Salvador, a cidade das mulheres”, promovido pelo Instituto de Inovação Tecnológica, Gestão e Desenvolvimento Social (IADES), em parceria com a ONG Amparamulher, o documento será encaminhado às principais autoridades do estado e do município nas áreas apontadas como mais vulneráveis. Além da deficiência de transporte público, serviços de saúde e educação, as mulheres apontaram os altos índices de feminicídio, assédio e outras formas de violência.
A vereadora Aladilce Souza (PCdoB) participou de todo o processo de escuta em diferentes comunidades e fez questão de prestigiar a plenária final, destacando a importância da “construção de uma cidade segura e inclusiva”. Líder da bancada da oposição na Câmara, ela sugeriu a criação de canais de organização das mulheres nos bairros, para dar continuidade à mobilização. “Podemos reivindicar espaços em escolas públicas de tempo integral para as atividades, elas precisam abrir as portas para as comunidades, para as mulheres continuarem fazendo a luta por uma cidade que seja digna e inclusiva para as mulheres. Porque se a cidade for boa para as mulheres, ela será boa para todas as pessoas”, declarou.
Chefes de famílias
O ciclo de oficinas fez parte da mobilização nacional “21 dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher”. O governador Jerônimo Rodrigues foi representado pelas secretárias de Políticas para Mulheres, Neuza Cadore, e de Promoção da Igualdade Racial, Ângela Guimarães, que se colocaram à disposição para encaminhar políticas públicas apontadas no Manifesto, destacando as ações sociais nas esferas federal e estadual que colocam a mulher na centralidade.
A mesa do evento contou com as presenças, ainda, de Carolina Dias, representante da Secretaria Municipal de Mobilidade (Semob); Larissa Gonçalves, da Secretaria Estadual de Educação; Mônica Campos, da Sesab; Cristiane Taquari, da Secult-Ba; Iracema Silva, da Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude (SPMJ); e Silvanete Brandão, da Abadef. O Manifesto foi lido por Natália Gonçalves, da União Brasileira de Mulheres.
Isabela Conde, do Amparamulher, e Cláudia Bezerra, do IADES, chamaram atenção para o fato das mulheres movimentarem a economia da capital baiana, diante da constatação de que a maioria das famílias são chefiadas por mães e avós, que precisam de oportunidades e políticas públicas. A Carta-Manifesto foi escrita baseada nos principais entraves apresentados pelas participantes das oficinas realizadas nos bairros da Federação, Cajazeiras, Península Itapagipana e Cabula. Vários grupos de mulheres participaram do ato, a exemplo do Flor de Cacto, da Associação Mirante do Bonfim e das idosas do Poder Grisalho, que dançaram encerrando a plenária de forma festiva.
Segue, na íntegra, o texto do documento:
MANIFESTO: A CIDADE DAS MULHERES PRECISA SER MAIS SEGURA, JUSTA E DEMOCRÁTICA
Somos 54,4% da população de Salvador, a capital mais feminina do país. Mas continuamos convivendo com altos índices de feminicídio, assédio e outras formas de violência. Um quadro agravado pela deficiência dos serviços públicos essenciais, como saúde, educação, transporte e habitação, o que também penaliza muito mais a nós, mulheres. E esse cenário é ainda mais perverso com as mulheres negras, sobretudo às que vivem nas periferias da nossa cidade.
A mobilização internacional “16 Dias de Ativismo Pelo Fim da Violência Contra a Mulher”, que no Brasil se tornou “21 Dias de Ativismo”, nos motivou a debater soluções para construir uma cidade mais segura, acolhedora e inclusiva. A partir do ciclo de oficinas “Salvador – a cidade das mulheres”, foram quatro rodadas de escuta, em diferentes regiões: bairros da Federação, Cajazeiras, Mirante do Bonfim e Cabula, com encontros promovidos pelo Instituto de Inovação Tecnológica, Gestão e Desenvolvimento Social (IADES).
Em cada encontro, o problema da segurança pública esteve no centro do debate. Mas, para além da exposição à guerra às drogas que atinge de forma mais violenta as comunidades periféricas, diversos outros pontos se entrelaçam com a violência que afeta de forma ainda mais intensa as mulheres.
A violência de gênero começa nas primeiras horas do dia. Atinge milhares de mulheres que precisam levantar mais cedo para preparar o alimento dos filhos e encaminhá-los para a escola, na maioria das vezes sem qualquer tipo de apoio do companheiro ou pai dos filhos, concentrando um cuidado que deveria ser compartilhado. Depois, se estende ao transporte público: o caminho até o ponto, o ônibus lotado, o sufoco para se chegar ao trabalho, o retorno ainda mais exaustivo. Tudo isso expostas ao assédio de olhares e comentários violentos, vulneráveis a abusos e amedrontadas pelas ameaças de estupro.
A violência também persegue as mulheres na negligência de serviços públicos. A ausência de creches ou escolas de tempo integral, por exemplo, muitas vezes afasta as mulheres do emprego para que cuidem dos filhos. Quando estes ficam doentes, lá estão novamente as mães na linha de frente do cuidado. Portanto, um sistema de saúde precarizado também gera sobrecarga e leva ao esgotamento físico e mental das mulheres.
Por isso, o enfrentamento à violência contra as mulheres não se resume a uma política de segurança pública. É preciso que todos os direitos humanos e os serviços públicos sejam garantidos e interligados. Da mesma forma, as políticas públicas para as mulheres não devem ser construídas apenas no âmbito de secretarias especiais. As questões de gênero devem ser refletidas em toda a política de Estado. Assim, servidoras e servidores públicos também devem estar preparados para atuar com respeito e sensibilidade para não reproduzir violências, o que infelizmente ainda ocorre em tribunais, maternidades e até mesmo em delegacias especializadas que deveriam acolher vítimas de violência.
Por isso, convidamos toda a sociedade e o poder público a pensarem uma cidade a partir das questões que atingem diretamente a vida das mulheres. É preciso construir uma cidade que enfrente o medo, o assédio e a violência que impedem as mulheres de transitar livremente na rua ou de exercerem com dignidade o seu trabalho. É preciso punir quem pratica a violência e não deslegitimar quem é vítima. É preciso executar políticas públicas que assegurem os direitos das mulheres. É preciso criar um ambiente favorável à mudança de cultura misógina e machista que estrutura o nosso país. É preciso ouvir as mulheres e retirar as barreiras que nos impedem de acessar espaços de poder e incidir nas decisões que movem nossa sociedade. É preciso garantir ações efetivas para cuidar e garantir a vida das mulheres. É urgente construir uma Salvador que respeite suas filhas, mães e avós.
Nossas vidas não podem continuar sendo descartadas, desprezadas ou violentadas. Lutamos por nossa liberdade e pelo direito de viver. E convocamos todos os homens e o poder público a também fazerem sua parte. O enfrentamento à violência contra a mulher é uma responsabilidade de todos nós. E seguiremos lutando, até que todas sejamos livres!
Porque se a cidade é boa para as mulheres, ela é boa para todas as pessoas!
Por uma Salvador que seja segura, inclusiva e acolhedora para todas nós mulheres!
Foto: Victor Queirós/Divulgação
