Claudimir Matos Junior, Historiador e Professor da Estácio
O 2 de Julho é a data em que se celebra a Independência da Bahia, marco histórico de 1823 que representa a retirada definitiva das tropas portuguesas de Salvador, quase um ano após a Proclamação da Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822.
Mais do que um capítulo regional, o 2 de Julho constitui o fechamento concreto do processo de independência brasileira. Foi a partir da vitória popular na Bahia que o Império consolidou seu território e garantiu a unidade nacional, evitando o destino de fragmentação vivido por outros países da América Latina. O que a espada de D. Pedro anunciou às margens do Ipiranga, o povo baiano confirmou com coragem, pólvora e suor.
A consolidação da independência brasileira não resultou de um único ato simbólico, mas de uma série de articulações políticas e militares espalhadas pelo país. Entre elas, o movimento que se desenrolou na Bahia, liderado por diversos setores da sociedade, foi decisivo para garantir a separação definitiva entre Brasil e Portugal. A resistência baiana não foi uma nota de rodapé — foi pilar da soberania nacional.
Mesmo após o grito do Ipiranga, as tropas portuguesas permaneceram fortificadas em Salvador, uma das mais importantes praças estratégicas do antigo império colonial. A manutenção do domínio luso representava uma ameaça real à integridade do novo Estado brasileiro. Nesse cenário, a Bahia tornou-se palco de uma das mais intensas e prolongadas campanhas de libertação da América Latina.
A mobilização teve início ainda em 1822, em cidades como Cachoeira, Santo Amaro, São Félix, Maragogipe e Itaparica. Ali, o sentimento de ruptura não foi apenas ideológico, mas também prático: era preciso resistir, organizar milícias, alimentar tropas, defender vilarejos. Participaram da luta homens e mulheres de diferentes origens — negros libertos e escravizados, indígenas, lavradores, artesãos, religiosos, soldados e representantes das elites locais. Uma frente popular ampla e plural.
O marco do levante ocorreu em 25 de junho de 1822, quando a Câmara de Cachoeira rompeu oficialmente com a autoridade portuguesa. Daquele momento em diante, formou-se uma frente de resistência que, ao longo de quase um ano, enfrentou os portugueses com bravura. O movimento ganhou força com a chegada de reforços enviados por D. Pedro I, sob comando do general Pedro Labatut, mas permaneceu sustentado principalmente pela adesão popular e pelo enraizamento nas comunidades locais.
A vitória definitiva veio em 2 de julho de 1823, com a retirada das tropas portuguesas de Salvador. O Exército Brasileiro entrou na cidade sob aplausos e celebrações populares, encerrando um ciclo de lutas que não apenas libertou a Bahia, mas selou a independência do Brasil de forma irreversível. Como observou o historiador Luiz Henrique Dias Tavares, foi a Bahia quem, “ao custo de muitos sacrifícios, garantiu que o Brasil não se partisse ao meio em seu nascimento como nação”.
A trajetória da campanha baiana é composta por nomes que a história oficial nem sempre valorizou. Entre os mais reconhecidos, destacam-se Maria Quitéria de Jesus, que se disfarçou de homem para lutar e tornou-se símbolo da bravura feminina na causa patriótica, e Joana Angélica, mártir que tentou impedir a invasão do Convento da Lapa pelas tropas portuguesas, sendo morta em nome da resistência.
Mas os verdadeiros protagonistas foram os milhares de anônimos — pessoas comuns que tornaram a causa da independência uma causa de pertencimento coletivo. Foram eles que garantiram abastecimento, transportaram armas, curaram feridos, organizaram trincheiras. Foram eles que deram corpo e alma à luta pela liberdade.
Essa presença popular é simbolizada, até hoje, nas figuras do caboclo e da cabocla, conduzidos no tradicional cortejo pelas ruas de Salvador. Representam o povo mestiço — descendente de indígenas, negros e brancos — que lutou e venceu. O caboclo é a imagem do herói coletivo: rosto sereno, postura ereta, firmeza nos traços. A cabocla, por sua vez, encarna o feminino insurgente, a força discreta das mulheres que também empunharam suas armas — literais ou simbólicas — na defesa da pátria.
Ambos percorrem a cidade em um carro alegórico, reverenciados como figuras cívicas e afetivas. Não são personagens estáticos: representam o Brasil real, o Brasil que constrói a própria história mesmo quando não ocupa os livros oficiais. Suas presenças no desfile cívico misturam religiosidade, civismo, orgulho e memória. São, como bem definiu o pesquisador Ordep Serra, “símbolos do herói coletivo, da síntese étnica e da memória popular encarnada”.
A cada 2 de Julho, Salvador se transforma em um grande palco de reconexão com o passado — mas não apenas com um passado glorioso, e sim com um passado construído pelo povo. Marcham os caboclos, marcham os estudantes, marcham os tambores. Marcha a Bahia e, com ela, marcha o Brasil.
Mais do que um feriado estadual, o 2 de Julho é uma lição de cidadania, pertencimento e resistência. Reconhecer sua importância para a história do Brasil não é apenas um dever acadêmico ou cívico — é um gesto de respeito ao povo que garantiu que este país fosse uno, livre e plural. A memória é um ato político. E na Bahia, ela continua viva. Em marcha.
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